sábado, 14 de novembro de 2009

No fundo do baú

Toda a gente devia ter uma caixinha de recordações. Uma daquelas caixas quase secretas que escondemos ou deixamos que passem despercebidas por estarem tão à vista.

Um dia por acaso ao remexer noutras coisas damos com ela. Então abrimos e redescobrimos uma série de pormenores dos quais não nos lembrávamos. Uma moeda, um postal, uma concha, um bilhete, um anel, uma fotografia….

Toda a gente devia ter uma caixinha de cartas. Daquelas que se mandavam pelo correio, que demoravam 5 dias a chegar, que metade escrevíamos em código para que não pudessem ser percebidas por mais ninguém. Páginas e páginas com uma caligrafia infantil e com histórias impagáveis.

Um dia por acaso damos com ela e sorrimos largamente com as aventuras. Olhamos para os selos, e para os amigos que tínhamos na altura. Muito vezes o fluxo informativo coincidia com período pós férias de Verão….

Mais ainda todos nós devíamos de ter um diário ou uma pasta com os textos que escrevemos na adolescência ou idade pré-adulta, guardada algures entre uma série de outros papéis.

Um dia por acaso pegamos neles e encontramos um poema:

O MAR VISTO P’LOS OLHOS DE UM CEGO
Fresco, salgado…
Cada gota que me toca na pele faz-me corar.
Não o vejo. Mas posso senti-lo…
Dizem-me que é azul. Eu não sei o que é azul, mas estou certo de que azul é vida, é magia, é conforto.
Toquei-lhe. Um arrepio invadiu-me todo o corpo, senti-me a flutuar.
Cerrei os olhos com mais força, “quero imaginá-lo”, dizem que começa em nós e não tem fim, que nele marcamos o nosso horizonte e por mais que caminhemos o horizonte não muda.
Mergulhei, entrei nele, sinto os pés a enterrarem-se na areia e sinto que ele me possui.
A praia parece deserta pois só oiço o rebentar das ondas e a voz que me conduziu até aqui,
Pedi-lhe que se calasse, que me deixasse “ver”.
Na minh’alma não há cores mas estou certo que é bem mais rica e fantasiosa do que muitos daqueles que se julgam perfeitos.
Envolvi-me no som da rebentação, e dancei com o vento, que me sussurrou ao ouvido.
Não conseguia parar, até que caí no chão rindo-me a gargalhadas soltas.
O vento continuou a soprar, as ondas a rolar, mas algo mudou…
Disseram-me que o sol se estava a pôr, que era como uma bola de fogo que se apagava no mar. No entanto, não tinha cheiro, nem som, nem emanava calor… Foi aí que chorei.


Escrito a 3 de Fevereiro de 1998 - 1º ano da faculdade. Encontrado a 14 de Novembro de 2009 enquanto procurava uns papeis do IRS.


Ps. Não posso deixar de fazer uma alusão ao Fabuloso Destino de Amélie Poulain, onde se encontra a ilustração perfeita da importância de uma caixa de recordações.